Gisálio Cerqueira Filho
A recente visita do Papa Francisco ao Brasil foi de um êxito espantoso.
De um lado, inebriou os jovens manifestantes brasileiros que recém saíram às ruas para serem protagonistas na construção de uma sociedade democrática que avance mais e mais na direção dos direitos sociais. De outro lado, ouviu do Papa Francisco um estímulo político forte na opção pelo encontro e diálogo como forma de fazer política. Sendo argentino e participando nas Jornadas Mundiais da Juventude, afirmou a sua condição de latino-americano sem negar o universalismo da Igreja Católica. Colocou com questão central a opção pelo trabalho missionário nas periferias e deu um caráter didático e pedagógico às suas falas convertendo-se numa liderança de massa inacreditável aos olhos de quem o observou com atenção na Praia de Copacabana. Esta converteu-se em palco para prédicas no melhor estilo jesuíta dos Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola. Que paradoxo que este grande opositor argentino à gestão do Pe. Pedro Arrupe, S.J. - Provincial Geral dos Jesuítas (1965-1083) - pudesse falar nesse tom, cercado de tantos opositores à teologia da libertação e justamente no Brasil. Não fosse ela percebida com tanto vezo antimarxista nas análises correntes, sobretudo à época do Papa João Paulo II, mas também como fruto de um ecumenismo aberto ao protestantismo de Martinho Lutero, e não teríamos hoje, talvez, as rivalidades, os conflitos e o declínio do número de católicos, especialmente no Brasil.
Os dados estatísticos apontam para um declínio, desde 1980, quando João Paulo II esteve no Brasil, de 89% da população que se dizia católica para em torno de 57 % nos dias de hoje.
Para o sociólogo Juan Marco Vaggione, mais do que especular se Bergoglio “(...) colaborou ou não com a ditadura, o que espanta é a dificuldade que a Igreja Católica Argentina ainda tem de realizar uma autocrítica sobre seu papel no apoio e legitimação do regime militar”.[1]
Todavia, foi na Casa do Sumaré, no auditório, falando para 60 bispos das Conferências Episcopais para a América Latina e Caribe (CELAM) que foram explicitadas as questões propriamente políticas quando o discipulato missionário opta pelas periferias.[2] Embora chamando de tentações a evitar, diz que “não se trata de sair à caça de demônios, mas simplesmente de lucidez e prudência evangélicas”[3]. Seria necessário então evitar:
“1) (...) a ideologização da mensagem evangélica: 1-a) no reducionismo socializante, com base em uma hermenêutica de acordo com as ciências sociais, seja pelo liberalismo de mercado até à categorização marxista. 1-b) na ideologização psicológica. Hermenêutica elitista que, em última análise, reduz-se a uma dinâmica de autoconhecimento. Acaba por resultar numa posição imanente auto-referencial. 1-c) na proposta gnóstica. Muito ligada à anterior. Costuma ocorrer em grupos de elites com uma proposta de espiritualidade superior, bastante desencarnada, que acaba por desembocar em posições pastorais de quaestiones disputatae (...)”.[4]
Para o Papa a proposta gnóstica foi o primeiro desvio da comunidade primitiva e reaparece, ao longo da história da Igreja, em edições corrigidas e renovadas. E na sequencia diz que estes...
“são vulgarmente denominados “católicos iluminados (por serem atualmente herdeiros do Iluminismo). 1-d) na proposta pelagiana. Aparece fundamentalmente sob a forma de restauracionismo. Perante os males da Igreja, busca-se uma solução apenas na disciplina, na restauração de condutas e formas superadas que, mesmo culturalmente, não possuem capacidade significativa. Na América Latina, costuma verificar-se em pequenos grupos, em algumas novas Congregações Religiosas, em tendências para a segurança doutrinal ou disciplinar. Fundamentalmente é estática, embora possa prometer uma dinâmica para dentro: regride. Procura recuperar o passado perdido”.[5]
A esta última visão, certamente conservadora, somam-se outras duas:
“2) O funcionalismo. A sua ação na Igreja é paralisante. Mais do que com a rota, se entusiasma com o roteiro. A concepção funcionalista não tolera o mistério, aposta na eficácia. Reduz a realidade da Igreja à estrutura de uma ONG. O que vale é o resultado palpável e as estatísticas. A partir disso, chega-se a todas as modalidades empresariais de Igreja. Constitui uma espécie de ‘teologia da prosperidade’ no organograma da pastoral. 3) O clericalismo é também muito atual na América Latina. Curiosamente, na maioria dos casos, trata-se de uma cumplicidade viciosa: o sacerdote clericaliza e o leigo lhe pede por favor que o clericalize, porque, no fundo, lhe resulta mais cômodo. O fenômeno do clericalismo explica, em grande parte, a falta de maturidade adulta e de liberdade cristã em boa parte do laicato da América Latina: ou não cresce (a maioria), ou se abriga sob coberturas de ideologizações como as indicadas, ou ainda em pertenças parciais e limitadas”.[6]
Para muitos, todavia as grandes questões para a Igreja no século XXI estarão no domínio da moral e não na opção preferencial pelos pobres. Há 15 anos atrás o Professor Cândido Mendes, em reunião da Associação Brasileira de Ciência Política com a participação da Associação Internacional de Ciência Política, realizada no Brasil, já aludia a algumas destas prioridades: divórcio, novo casamento para divorciados, pesquisa com células tronco, opção pela hora de morrer em circunstâncias especiais. Poderíamos acrescentar: casamento homo-afetivo com possibilidade de adoção de filhos, regulação da natalidade, fármacos contraceptivos, nova percepção não misógina com relação às mulheres na Igreja[7], aborto em certas situações, questionamento do celibato para sacerdotes, etc. Todas essas observações estariam relacionadas especialmente com o corpo e, por isso Juan Arias, ressalta a radical separação entre corpo e espírito no pensamento cristão. De fato, a “influência platônica da filosofia grega com Santo Agostinho (século IV do Império Romano), viu o corpo como prisão do espírito. E isso tem vindo até os nossos dias; mas assim não era na cultura judaica primitiva onde o corpo não era considerado imoral”.[8]Ressalte-se que as primeiras comunidades cristãs beberam nesta cultura judaica primeva e então viam o corpo em maior sintonia com o espírito. Daí que uma discurso e prática inclusive de natureza teológica, não pode deixar de lado a articulação entre uma práxis (relação entre a teoria e prática) voltada para os pobres e uma himerização mesmo desse discurso, capaz de associar Himeneu e Eros enquanto metáforas para o amor, o sexo, a sexualidade, o desejo, a subjetividade enfim.
Seria pedir demais à utopia?
[1] Marcos de Paula. “Que Papa é esse?” Entrevista com o sociólogo Juan Marco Vaggione, In O Estado de São Paulo, 27 de julho de 2013.
[3] Idem.
[4] Idem.
[5] Idem.
[6] Idem.
[7] Ver especialmente Uta Ranke-Heinemann. Os Eunucos de Deus, Rio de Janeiro: Vozes, 1988.
[8] Juan Arias. “A carne não é território do pecado”, In Prosa e Verso, O Globo. Rio de Janeiro, 27/07/2013, p. 8.
--
Postado por Núcleo Observando o Sul no Núcleo Observando o Sul em 7/31/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário